quarta-feira, 9 de março de 2011

O Rio ganhou dois presentes da história

ELIO GASPARI 

Um grande livro e o cais de desembarque dos escravos ajudarão a cidade a conhecer seu passado

HÁ MUITO TEMPO o Rio de Janeiro não recebia notícias tão boas de seu passado. É provável que uma equipe de arqueólogos do Museu Nacional tenha encontrado nas escavações da zona portuária as lajes de pedra do cais do Valongo. Entre 1758 e 1851, por aquelas pedras passaram pelo menos 600 mil escravos trazidos d'África. Metade deles tinham entre 10 e 19 anos.
Devolvido à superfície, o cais do Valongo trará ao século 21 o maior porto de chegada de escravos do mundo. Se ele foi soterrado e esquecido, isso se deveu à astuta amnésia que expulsa o negro da história do Brasil. A própria construção do cais teve o propósito de tirar do coração da cidade o mercado de escravos.
A região da Gâmboa tornou-se um mercado de gente, mas as melhores descrições do que lá acontecia saíram todas da pena de viajantes estrangeiros. Os negros ficavam expostos no térreo de sobrados da rua do Valongo (atual Camerino). Em 1817, contaram-se 50 salas onde ficavam 2.000 negros (peças, no idioma da época).
Os milhares de africanos que morreram por conta da viagem ou de padecimentos posteriores, foram jogados numa área que se denominou Cemitério dos Pretos Novos.
Ele foi achado em 1996, durante a reforma de uma casa e, desde então, está sob os cuidados de arqueólogos e historiadores. O cemitério foi soterrado por um lixão, verdadeiro monumento à cultura da amnésia. Devem-se à professora americana Mary Karach 32 páginas magistrais sobre o Valongo. Estão no seu livro "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro - 1808-1850".
Com o possível achado do cais, o prefeito Eduardo Paes anunciou que transformará a área num museu a céu aberto. (Cesar Maia prometeu algo parecido com o cemitério, mas deu em pouca coisa.) Felizmente, as obras do porto respeitarão as restrições recomendadas pelos arqueólogos, até porque, se o Cais do Valongo não estiver exatamente onde se acredita, estará por perto.
O segundo presente são os dois volumes de "Geografia Histórica do Rio de Janeiro - 1502-1700", do professor Mauricio de Almeida Abreu. É uma daquelas obras que só aparecem de 20 em 20 anos. (O livro de Karasch, que está na mesma categoria, é de 1987.)
Ele leu tudo e, em diversos pontos controversos, desempatou controvérsias indo às fontes primárias. Erudito, bem escrito, bem exposto, é um prazer para o leitor. Além disso, os dois pesados volumes da obra estão criteriosamente ilustrados. Nele aprende-se, por exemplo, que o primeiro plano urbano da cidade, do tempo de Mem de Sá, foi traçado por um degredado, Nuno Garcia. (Fuçando-se, sabe-se que era um homicida.)
A edição de 3.000 exemplares, copatrocinada pela Prefeitura do Rio, é um luxo, mas o preço ficou salgado (R$ 198). Sua aparência de livro de mesa pode jogá-lo numa armadilha: quem o tem raramente o lê e quem quer lê-lo não tem como comprá-lo. A prefeitura poderia socorrer a patuleia, providenciando uma edição mais barata ou, até mesmo, uma versão eletrônica.
Quem quiser saber mais (e muito) sobre o Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, pode buscar na internet, em PDF:
Valongo: O Mercado de Escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831, do professor Cláudio de Paula Honorato.
À flor da terra: O Cemitério dos Pretos Novos do Rio de Janeiro, de Júlio César Medeiros da Silva Pereira.

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