sexta-feira, 18 de maio de 2012

Clássico da contracultura, filme de Neville d'Almeida perdido por 40 anos terá 1ª exibição no país

Cenas de "Mangue-Bangue"
Cenas de "Mangue-Bangue"

Nas margens do mangue

SILAS MARTÍ
DE SÃO PAULO

Um homem entra em convulsão no meio da Bolsa de Valores. Consegue se arrastar até a porta. Vomita as tripas e desaba numa poça de lama. Em paralelo, galos se engalfinham numa briga sem fim.

Em "Mangue-Bangue", o diretor Neville d'Almeida traça um paralelo entre homem e bicho para construir o que chamou de um "painel de 1971", tempo de milagre econômico, drogas, liberdade sexual, censura e preconceito.

Foi essa a época que o cineasta tentou dissecar nas sequências do filme que rodou no Mangue, zona de prostituição carioca a algumas quadras da Central do Brasil, que visitou com o amigo Hélio Oiticica no começo dos anos 70.

Com medo da ditadura, ele pôs os dois rolos do filme na mala e fugiu para Londres, onde revelou os negativos.

Só dois anos mais tarde, em Nova York, D'Almeida encontrou Oiticica, que morava lá, e decidiu mostrar o filme numa sessão no MoMA, o museu de arte moderna, onde os rolos ficaram esquecidos por décadas até serem reencontrados e restaurados.

Agora, mais de 40 anos depois de feito, "Mangue-Bangue", um clássico perdido da contracultura, será mostrado pela primeira vez no Brasil numa retrospectiva do cineasta no Sesc Santo Amaro.

"Quis fazer um filme de ruptura", disse o diretor ao rever o filme em sessão exclusiva para a Folha, em São Paulo. "Estava revoltado com a censura. Então, queria mostrar as drogas, gente tomando um pico na veia, esse vômito que carrega toda a ditadura, sequências brutais."

Em cena, prostitutas e travestis aparecem se drogando e os atores Maria Gladys e Paulo Villaça encarnam homem e mulher em busca de liberdade -algo entre ode e crítica à condição humana em tempos de exceção.

Trata-se também de uma forma excepcional. O filme foi o ponto de partida da colaboração de D'Almeida e Oiticica que resultou nas "Cosmococas", instalações que mergulham o espectador em imagens, música e cenografia.

Escrevendo sobre o filme, Oiticica identificou na obra uma "edição em blocos geométricos, uma estrutura em moto perpétuo", já que o roteiro, sem texto, embaralha as sequências num vaivém arrebatador de imagens que alternam beleza e repulsa.

Nas palavras de Luis Pérez-Oramas, curador de arte latino-americana do MoMA, "Mangue-Bangue" oscila entre "o excrementício e o puro, a alvura e o mundano, o agônico e o extático".

Depois de restaurado pelo museu americano a um custo de R$ 200 mil, o filme veio à luz numa sessão em Nova York há quatro anos, no auge da crise financeira que abalou os mercados e instaurou um novo ciclo de miséria.

"'Mangue-Bangue' ganhou então uma dimensão urgente e atual para mim", escreveu Pérez-Oramas. "É a imagem de um mundo de poder reduzido ao vômito, uma crítica radical do nosso tempo e também uma das mais acerbas imagens da decomposição formal na arte ocidental.

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