Contardo Calligaris
Os que consideramos maníacos sexuais são apenas os que praticam mais
sexo do que a gente Imagine alguém que acaba sua noite com um sexo rápido e intenso, em
pé, embaixo de uma ponte, e eis que, uma vez em casa, ele entra na
internet e transa virtualmente com uma stripper de site on-line.
Não há gozo que lhe baste: sempre sobra a vontade de mais uma vez,
mesmo que seja se masturbando com esforço. Outra noite, depois de ter
brincado pesado com uma moça num bar, ele se pega com um cara no
labirinto de uma boate gay: na procura por mais sexo, vale tudo.
Mas cada rosa tem seus espinhos. O disco rígido do nosso jovem está
repleto de pornografia, até no computador do escritório -o que é
arriscado. E, sobretudo, ele está aflito: a vergonha o leva a jogar
fora (periodicamente) os apetrechos de sua sexualidade fantasiosa, e
ele sente culpa de não conseguir ser o irmão, o amigo -e, quem sabe, o
namorado- que ele talvez gostasse de ser.
Se esse alguém pedir ajuda a um terapeuta, alguns colegas tirarão da
manga o "diagnóstico" de sexo-dependência ("sexual addiction") e
proporão o programa em 12 passos (ensinado nas especializações em
sexo-dependência), para que o indivíduo aprenda a se controlar e a
renunciar, ao menos em parte, ao sexo, que teria se tornado, para ele,
uma espécie de droga.
Mesmo sem acreditar nos 12 passos, outros colegas concordarão com o
diagnóstico e simpatizarão com o "óbvio" sofrimento do
"sexo-dependente" -afinal, eles imaginarão, essa prática endemoniada
do sexo "deve", no mínimo, aviltar o indivíduo aos seus próprios
olhos.
Outros colegas ainda (e eu com eles), ao receber o pedido de ajuda de
um suposto sexo-dependente, reagiriam de maneira diferente: não se
preocupariam nem com as fantasias, nem com as práticas sexuais do
paciente, mas com a culpa e a vergonha que as acompanham.
Eu também anunciaria ao paciente que não sei (ninguém sabe)
disciplinar o desejo sexual; só posso, se ele quiser, tentar
disciplinar a culpa e a vergonha que azucrinam sua vida e estragam
seus prazeres.
Quem viu "Shame" (vergonha), de Steve McQueen, percebeu que nosso
paciente hipotético se parece com o protagonista do filme.
Em cartaz desde sexta passada, "Shame" é, ao mesmo tempo, ousado e
careta. Ousado, pelo retrato da procura sexual do protagonista
(muitos, sem dúvida, se reconhecerão), e careta, porque essa procura
parece ser necessariamente doentia, culpada e vergonhosa.
Concordo com Cássio Starling ("Ilustrada" de 16/3): o filme é ótimo,
mas discordo do destaque do artigo, segundo o qual "McQueen foge do
moralismo ao abordar a compulsão por sexo". Quem enxerga o desejo
sexual do outro como uma patologia é sempre moralista. Em matéria de
sexo, patologizar é o jeito moderno de estigmatizar e policiar
(conselho: fuja de parceiros que acham você "doente").
McQueen (na mesma "Ilustrada") declarou que o negócio dele é desafiar
as pessoas. Ora, apresentar um obcecado por sexo como um doente que
sofre de vergonha e culpa, isso não é desafio algum -ao contrário, é a
confirmação de um lugar-comum.
Um lugar-comum confirmado por psiquiatria e psicologia? Nem isso.
Certo, desde o século retrasado, a psiquiatria e a psicologia são
regularmente chamadas a substituir a religião, que (digamos assim)
cansou de ser a grande ordenadora e controladora do comportamento
humano. No caso, a ideia da "sexo-dependência" surgiu nos anos 1970
-provavelmente, como reação contra o interesse "excessivo" pelo sexo
durante a dita liberação sexual dos anos 1960.
Mas, sentindo talvez o bafo do moralismo, muitos psiquiatras e a
psicólogos receberam essa categoria diagnóstica com desconfiança. Quem
a adotou e promoveu foram a imprensa e o grande público (e isso bastou
para que surgisse uma pequena indústria de clínicas, programas
universitários etc.). Mas por quê, então, esse sucesso popular da
"sexo-dependência", na qual McQueen parece acreditar?
Apenas uma constatação: a associação de sexo com vergonha e culpa é um
bordão cultural muito antigo, no qual somos convidados a acreditar por
todo tipo de poder. A exigência de domesticar o desejo sexual parece
ser, aos olhos de todos, um pré-requisito básico de qualquer ordem
social.
Além disso, há a eterna inveja dos reprimidos: como dizia Alfred
Kinsey, em regra, os que consideramos doentes e maníacos sexuais são
apenas os que praticam mais sexo do que a gente. Artigo da Folha de São Paulo- Ilustrada
Os que consideramos maníacos sexuais são apenas os que praticam mais
sexo do que a gente Imagine alguém que acaba sua noite com um sexo rápido e intenso, em
pé, embaixo de uma ponte, e eis que, uma vez em casa, ele entra na
internet e transa virtualmente com uma stripper de site on-line.
Não há gozo que lhe baste: sempre sobra a vontade de mais uma vez,
mesmo que seja se masturbando com esforço. Outra noite, depois de ter
brincado pesado com uma moça num bar, ele se pega com um cara no
labirinto de uma boate gay: na procura por mais sexo, vale tudo.
Mas cada rosa tem seus espinhos. O disco rígido do nosso jovem está
repleto de pornografia, até no computador do escritório -o que é
arriscado. E, sobretudo, ele está aflito: a vergonha o leva a jogar
fora (periodicamente) os apetrechos de sua sexualidade fantasiosa, e
ele sente culpa de não conseguir ser o irmão, o amigo -e, quem sabe, o
namorado- que ele talvez gostasse de ser.
Se esse alguém pedir ajuda a um terapeuta, alguns colegas tirarão da
manga o "diagnóstico" de sexo-dependência ("sexual addiction") e
proporão o programa em 12 passos (ensinado nas especializações em
sexo-dependência), para que o indivíduo aprenda a se controlar e a
renunciar, ao menos em parte, ao sexo, que teria se tornado, para ele,
uma espécie de droga.
Mesmo sem acreditar nos 12 passos, outros colegas concordarão com o
diagnóstico e simpatizarão com o "óbvio" sofrimento do
"sexo-dependente" -afinal, eles imaginarão, essa prática endemoniada
do sexo "deve", no mínimo, aviltar o indivíduo aos seus próprios
olhos.
Outros colegas ainda (e eu com eles), ao receber o pedido de ajuda de
um suposto sexo-dependente, reagiriam de maneira diferente: não se
preocupariam nem com as fantasias, nem com as práticas sexuais do
paciente, mas com a culpa e a vergonha que as acompanham.
Eu também anunciaria ao paciente que não sei (ninguém sabe)
disciplinar o desejo sexual; só posso, se ele quiser, tentar
disciplinar a culpa e a vergonha que azucrinam sua vida e estragam
seus prazeres.
Quem viu "Shame" (vergonha), de Steve McQueen, percebeu que nosso
paciente hipotético se parece com o protagonista do filme.
Em cartaz desde sexta passada, "Shame" é, ao mesmo tempo, ousado e
careta. Ousado, pelo retrato da procura sexual do protagonista
(muitos, sem dúvida, se reconhecerão), e careta, porque essa procura
parece ser necessariamente doentia, culpada e vergonhosa.
Concordo com Cássio Starling ("Ilustrada" de 16/3): o filme é ótimo,
mas discordo do destaque do artigo, segundo o qual "McQueen foge do
moralismo ao abordar a compulsão por sexo". Quem enxerga o desejo
sexual do outro como uma patologia é sempre moralista. Em matéria de
sexo, patologizar é o jeito moderno de estigmatizar e policiar
(conselho: fuja de parceiros que acham você "doente").
McQueen (na mesma "Ilustrada") declarou que o negócio dele é desafiar
as pessoas. Ora, apresentar um obcecado por sexo como um doente que
sofre de vergonha e culpa, isso não é desafio algum -ao contrário, é a
confirmação de um lugar-comum.
Um lugar-comum confirmado por psiquiatria e psicologia? Nem isso.
Certo, desde o século retrasado, a psiquiatria e a psicologia são
regularmente chamadas a substituir a religião, que (digamos assim)
cansou de ser a grande ordenadora e controladora do comportamento
humano. No caso, a ideia da "sexo-dependência" surgiu nos anos 1970
-provavelmente, como reação contra o interesse "excessivo" pelo sexo
durante a dita liberação sexual dos anos 1960.
Mas, sentindo talvez o bafo do moralismo, muitos psiquiatras e a
psicólogos receberam essa categoria diagnóstica com desconfiança. Quem
a adotou e promoveu foram a imprensa e o grande público (e isso bastou
para que surgisse uma pequena indústria de clínicas, programas
universitários etc.). Mas por quê, então, esse sucesso popular da
"sexo-dependência", na qual McQueen parece acreditar?
Apenas uma constatação: a associação de sexo com vergonha e culpa é um
bordão cultural muito antigo, no qual somos convidados a acreditar por
todo tipo de poder. A exigência de domesticar o desejo sexual parece
ser, aos olhos de todos, um pré-requisito básico de qualquer ordem
social.
Além disso, há a eterna inveja dos reprimidos: como dizia Alfred
Kinsey, em regra, os que consideramos doentes e maníacos sexuais são
apenas os que praticam mais sexo do que a gente. Artigo da Folha de São Paulo- Ilustrada